segunda-feira, agosto 09, 2004

O poder da palavra

Neste momento estou a ouvir, pela n-ésima vez Apothecary Rx do Carl Hancock Rux (CHR). Vá-se lá perceber porquê (o disco estava gravado desde o ano passado), mas só em Maio apareceu nos escaparates. Gilles Peterson já o tinha ouvido há bastante tempo e até já o tinha catalogado como uma obra-prima dos tempos modernos. E eu já o tinha ouvido integralmente em concerto no TAGV em Coimbra (já agora, acrescento que foi um espectáculo sobre-excelente, que só pecou por a banda ser nova - mas muito competente - e não conhecer as músicas do 1º disco de 1999, Rux Revue).

1º facto: CHR é o legítimo herdeiro de Gil Scott-Heron (GSH). 2º facto: GSH gravou muitos bons discos, mas provavelmente nenhum tão bom quanto Apothecary Rx. 3º facto: Apothecary Rx é o melhor disco soul desde 1997, o ano de When The Funk Hits The Fan (King Britt/Sylk 130) e Baduizm (Erykah Badu). Para se perceber o alcance desta obra-prima, até poderia ficar por aqui, mas CHR merece mais palavras, pois ele é o poeta dos tempos modernos, assim como Ursula Rucker é a poetisa.

Quase sempre na 1º pessoa, em menos de 1 hora, Rux guia-nos ora por sonhos, ora pesadelos (públicos e privados), deixando-nos no final com a sensação (descrita nos ensaios de Oscar Wilde) de que estivemos a viver intensas alegrias que não são nossas e a carpir desgraças que não nos dizem respeito, mas às quais não conseguimos ficar indiferentes. Se quiserem um imagem, pensem nos melhores filmes de David Lynch ou, até, numa cerimónia de exorcismo voodoo. Para tal, CHR recorre à música clássica, aos blues (Dr. John), ao jazz (o fantasma de Billie Holiday), ao folk, ao funk, ao rock (Captain Beefheart), ao hip-hop (Disposable Heroes of Hiphoprisy), ao gospel e até às inclassificáveis experiências ensaiadas por Byrne & Eno (e Hassell...) em My Life In The Bush Of Ghosts; tudo para criar ele próprio um inqualificável objecto musical, sempre assente sobre uma matriz soul onde podemos encontrar grooves memoráveis, matéria-prima suficiente para entreter até à exaustão os estetas do cut & paste.


CHR é o perfeito pretexto para discorrer sobre o facto de nos últimos 2 anos a palavra em música ter sido recuperada com uma intensidade que já não se via desde 89 e o esplendor do hip-hop. Os melhores discos dos últimos meses foram feitos quase sempre de canções; e se não, vejamos a lista: 2 Banks of 4, 3 Generations Walking, Micatone, Domenico Ferrari, Deyampert, Ursula Rucker e Joseph Malik.

Durante mais de uma década quase sempre a melhor música foi feita sem palavras, mas o ano passado quebrou definitivamente o tabu e o formato canção regressou em força, abrindo espaço para os poetas contemporâneos. Aguardam-se os novos desenvolvimentos.

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