sábado, agosto 09, 2008

O tesouro


Ainda há surpresas. Estava há uns dias a verificar as novidades da loja Dusty Groove e chamou-me a atenção o texto publicado pelos sempre atentos retalhistas de Chicago. Nunca ouvi falar de Zélia Barbosa antes (mesmo o google devolve pouca informação), mas bastou ouvir uma faixa para perceber que se tratava de algo muito muito especial, disponível apenas para os mais afortunados. Com uma voz e phrasing irrepreensível, Zélia podia ter sido tão grande como Elis. E nestas gravações efectuadas durante os anos 60 (aparentemente tudo o que gravou) a voz de Zélia, acompanhada por uma pequena banda de jazz (desconhecida, tremenda secção rítmica, com um contrabaixo a pilotar várias vezes a dinâmica instrumental) em absoluto estado de graça e swing, sobe verdadeiramente ao Olimpo, particularmente em "Opinião", "Funeral do Lavrador", "Pedro Pedreiro", "Pau de Arara", "Zelão" (que fantástica interpretação do clássico de Sérgio Ricardo!), "Feio Não é Bonito" (passem a considerar o mais delicioso dos pleonasmos, depois de ouvir) e "Cicatiz". As letras são outro tema à parte: poucas vezes se ouviu de forma tão emocionante a alma profunda do Nordeste Brasileiro. Experiência inesquecível.

domingo, novembro 05, 2006

To know Syreeta is to love Syreeta

Até há um par de anos o nome de Syreeta era-me absolutamente desconhecido. Depois de ter ouvido alguns samples ficou de imediato perto do topo da minha lista de "must-buys". Na verdade não é muito fácil aceder à sua música: os dois primeiros discos há muito deixarem de estar disponíveis, se exceptuarmos uma edição japonesa de Syreeta (1972) e uma edição limitada da Hip-O Select, que reúne este com Stevie Wonder Presents Syreeta (1974), apenas disponível para venda no website.

Nestas coisas nem sempre se pode perder a cabeça: edições japonesas e impostos alfâdegários de importações fora da UE dão cabo do orçamento de um melómano. Resolvi parcialmente o problema há alguns dias com The Essential Syreeta, compilação low price da Spectrum/Universal. Meia dúzia de faixas do disco de 74, bem menos do disco de 72 (infelizmente!), algum material posterior (bem menos interessante...) e as duas faixas do 1º single pré-Stevie de 68 (como Rita Wright).





Como começar? A voz de Syreeta pertence àquela categoria de vozes soul transcendentes, algo entre Martha Reeves e Minnie Riperton. Muito mais não seria necessário acrescentar, mas os dois primeiros discos contam com a escrita e produção de um dos melhores escritores de canções de sempre no seu topo de forma (Wonder assinou a sua obra-prima Innervisions em 1973). Podem acreditar que foi um acto criminoso DJ Spinna e Bobbito terem deixado Syreeta de fora nas duas compilações de versões de Stevie Wonder editadas em 2003 e 2004.

E podia ficar por aqui, mas existe uma faixa do primeiro disco de Syreeta que se chama 'To Know You Is To Love You', cantada em dueto com Stevie, que entra directamente para o olimpo da música pop. A voz de Syreeta está aqui mais apurada que nunca, envolta uma deliciosa orquestração e guitarra groovy. O equivalente musical para a tensão pré-coital.

Friedman stripped to the bone



Burnt Friedmen pertence aquela categoria de músicos em que o acto de gravar tem a cadência do próprio respirar. No jazz é quase sempre assim, mas pelos mares da pop, só recordo Bill Laswell ou Fela Kuti. Desta vez resolveu submeter uma amostra do seu património mais recente a uma rigorosa dieta de dub/jazz pelas mãos dos Root 70. 10 faixas rigorosamente cronometradas a 5 minutos para uma imaculada reconstrução metódica do seu próprio universo. Com tão bom resultado só me ocorre a reconstrução de Laswell para o legado da figura mais emblemática do reggae em Dreams of Freedom: Ambient Translations of Bob Marley in Dub. Em ambos os casos, encontramos o que seria improvável: versões quase sempre com valia estética superior aos originais e a descoberta na matéria-prima de uma nova profundidade quase espiritual. Mas onde Laswell aspirava a uma condição de King Tubby atmosférico, Heaps Dub mostra um músico com a rara capacidade de se re-inventar a si próprio. Miles Davis teria aprovado. Designer Groove, como o título da sobreexcelente segunda faixa.

Goodgroove: the comeback

Continuo a ouvir quase tanta música como há dois anos atrás (ou mesmo 20). Apenas por falta de tempo não escuto mais. E por isso também não voltei a escrever por aqui. Acontecerem tantos discos durante dois anos e tantos mais 50 anos anos. A música é intemporal? Sim. Mas os discos nem sempre.

Estou a ouvir Nino Moschella. Aquela história do "less is more" é tantas vezes verdade. Descobri com os Young Marble Giants, mas podia ter sido com a Motown. The Fix descende de Prince em Under the Cherry Moon, a obra-prima do soul/funk minimalista. Basta ouvir a primeira faixa, 'Are You For Real', para saber isso. Prince terá deixado pelo caminho bastante descendência (todo o movimento "nu-soul"), mas pelo lado do tom de pele mais claro Beck destaca-se. Ou melhor, acabou de se destacar com o último, The Information, talvez o melhor disco de 2006.

terça-feira, agosto 10, 2004

O nome do blog

Talvez o nome deste blog não seja assim tão óbvio e mereça uma explicação. Adventures In The Land Of The Good Groove é um nome de um disco de Nile Rodgers gravado em 1983. Rodgers e Bernard Edwards eram os masterminds dos Chic. Cada um deles, o 1º com a guitarra eléctrica e o 2º com o baixo, foram responsáveis por alguns dos grooves mais emblemáticos da história da música e, em consequência, os verdadeiros pais da música de dança (no modelo em que a conhecemos actualmente), seja pela influência que a utilização dos seus samples teve no advento do hip-hop, seja pela influência directa ou indirecta no som Soul II Soul, acid, house, acid jazz e até tecno e até drum 'n' bass (calculem quem foi responsável por introduzir o baixo eléctico em 1º plano na mesa de mistura...). Em poucas palavras, os Chic não foram apenas a melhor banda do disco, mas sobretudo a melhor banda de música de dança de todos os tempos. Gravaram 8 discos entre 77 e 92. Os 3 discos gravados na década de 70 e o disco de 92 deverão contudo ser destacados, bem como o 1º disco a solo de Rodgers (Adventures...) e o disco que produziram para as Sister Sledge em 79 (We Are Family). Rodgers ainda está no activo, contando com um vasto legado como session musician e produtor. Importa destacar Cosmic Thing (1989) dos B-52's, mas pode-se adiantar que ele esteve ligado a nomes tão improváveis como Maddona ('Like A Virgin'), Duran Duran, David Bowie, Laurie Anderson, Brian Ferry, Mick Jagger, Diana Ross, Mica Paris, Cindi Lauper, Robert Palmer e, mais recentemente, Groove Armada e Joss Stone. Bernard Edwards já não está entre nós.

Daí que fosse obrigatório que este blog lhes prestasse a devida homenagem, a começar pelo nome. Paradoxalmente, o disco a que faz referência nunca foi reeditado e apenas o conheço pelos mp3 que circulam pela net.



Quanto aos mais importantes grooves dos Chic, destacam-se 'Le Freak' (composto na sequência de uma recusa do porteiro do Studio 54 em deixá-los entrar) , 'Good Times' (a linha de baixo foi samplada centenas de vezes, pela 1º vez em 'Rapper's Delight' dos Sugarhill Gang), 'I Want Your Love' (oiçam o refrão no excelente 'I Can' Kick This Feeling When It Hits' de Moodymann), 'Chic Mystique' (o regresso em 92). O disco das Sister Sledge tem muitas pérolas, mas 'He's The Greatest Dancer', 'Lost In Music', 'Thinking Of You' e 'We Are Familiy' são as jóias groove da coroa.

Aos todos os iniciantes, curiosos e desconfiados, aconselho que encontrem urgentemente Risqué (1979) e também We Are Family das Sister Sledge.


O filme de uma banda sonora

Normalmente é exactamente ao contrário: uma banda sonora para um filme. Mas os Troublemakers resolveram inverter a ordem. O 2º disco do trio de Marselha contém um filme para uma banda sonora: aliás, Express Way está devidamente acomodado em DVD como anexo ao CD. Não falo sobre o filme, porque não merece a pena (aliás, nem o consegui ver até ao fim). Mas a música (a tal banda sonora) é deslumbrante. Já no primeiro disco (Doubts & Convictions, de 2001) os Troublemakers apresentavam uma depuração estética que convocava o universo cinéfilo (indo ao ponto de samplar a voz de Robert de Niro em Taxi Driver, na sublime 'Black City'), mas Express Way leva o assunto ainda mais a sério. Os materiais utilizados no 1º disco (funk, hip-hop, jazz, soul, house, bues, clássica) são desta vez potenciados em favor de uma coerência cénica ainda mais apurada, para o que contribuem vozes soul e hip-hop em diversas faixas. Pelo caminho, aproveita-se para render honestas homenagens a Billie Holiday (que parece assinada por Serge Gainsbourg) e Lester Young e, de boleia, dar mais um contributo decisivo para a ciência do rare groove.



Pode afirmar-se que, não fossem os Troublemakers, a cena francesa teria desparecido com o mesmo fulgar com que despontou há quase 10 anos atrás, trazendo ao mundo as obras-primas de St Germain, Motorbass, Gotan Project ou mesmo Ready & Made, Alex Gopher e a editora Comet de Doctor L. O tempo dirá se se deverá continuar a considerar Doubts & Convictions como a obra-prima dos Troublemakers, mas Express Way é um facto estético de relevo e coloca-os no restrito grupo dos projectos actuais que conseguem gravar o 2º registo sem o proverbial passo em falso.

segunda-feira, agosto 09, 2004

O poder da palavra

Neste momento estou a ouvir, pela n-ésima vez Apothecary Rx do Carl Hancock Rux (CHR). Vá-se lá perceber porquê (o disco estava gravado desde o ano passado), mas só em Maio apareceu nos escaparates. Gilles Peterson já o tinha ouvido há bastante tempo e até já o tinha catalogado como uma obra-prima dos tempos modernos. E eu já o tinha ouvido integralmente em concerto no TAGV em Coimbra (já agora, acrescento que foi um espectáculo sobre-excelente, que só pecou por a banda ser nova - mas muito competente - e não conhecer as músicas do 1º disco de 1999, Rux Revue).

1º facto: CHR é o legítimo herdeiro de Gil Scott-Heron (GSH). 2º facto: GSH gravou muitos bons discos, mas provavelmente nenhum tão bom quanto Apothecary Rx. 3º facto: Apothecary Rx é o melhor disco soul desde 1997, o ano de When The Funk Hits The Fan (King Britt/Sylk 130) e Baduizm (Erykah Badu). Para se perceber o alcance desta obra-prima, até poderia ficar por aqui, mas CHR merece mais palavras, pois ele é o poeta dos tempos modernos, assim como Ursula Rucker é a poetisa.

Quase sempre na 1º pessoa, em menos de 1 hora, Rux guia-nos ora por sonhos, ora pesadelos (públicos e privados), deixando-nos no final com a sensação (descrita nos ensaios de Oscar Wilde) de que estivemos a viver intensas alegrias que não são nossas e a carpir desgraças que não nos dizem respeito, mas às quais não conseguimos ficar indiferentes. Se quiserem um imagem, pensem nos melhores filmes de David Lynch ou, até, numa cerimónia de exorcismo voodoo. Para tal, CHR recorre à música clássica, aos blues (Dr. John), ao jazz (o fantasma de Billie Holiday), ao folk, ao funk, ao rock (Captain Beefheart), ao hip-hop (Disposable Heroes of Hiphoprisy), ao gospel e até às inclassificáveis experiências ensaiadas por Byrne & Eno (e Hassell...) em My Life In The Bush Of Ghosts; tudo para criar ele próprio um inqualificável objecto musical, sempre assente sobre uma matriz soul onde podemos encontrar grooves memoráveis, matéria-prima suficiente para entreter até à exaustão os estetas do cut & paste.


CHR é o perfeito pretexto para discorrer sobre o facto de nos últimos 2 anos a palavra em música ter sido recuperada com uma intensidade que já não se via desde 89 e o esplendor do hip-hop. Os melhores discos dos últimos meses foram feitos quase sempre de canções; e se não, vejamos a lista: 2 Banks of 4, 3 Generations Walking, Micatone, Domenico Ferrari, Deyampert, Ursula Rucker e Joseph Malik.

Durante mais de uma década quase sempre a melhor música foi feita sem palavras, mas o ano passado quebrou definitivamente o tabu e o formato canção regressou em força, abrindo espaço para os poetas contemporâneos. Aguardam-se os novos desenvolvimentos.

Soul, divisão de honra

De volta às recensões da última compra na Amazon, estarei a ouvir por uma das últimas vezes um disco antigo do Terry Callier, Occasional Rain de 1972, 2º disco da sua carreira, considerado como o melhor da trilogia que gravou para a Cadet entre 72 e 75). Callier foi pioneiro na sua abordagem soul/folk, numa altura em que a maior parte dos seus contemporâneos se dedicava à fusão soul/jazz. A sua atitude lo-fi combinava bem com o ambiente sonoro e com as suas letras. As inspirações não estariam longe de Woody Guthrie, Impressions/Curtis Mayfield, Them/Van Morrison e Fairport Convention/Richard Thompson (a semelhança na forma de cantar é espantosa, se considerarmos que um é negro e o outro branco). Occasional Rain é um disco que se ouve bem, mas não se percebe muito bem porque Callier é tão incensado nos dias que correm, ao ponto de Gilles Peterson, através da sua Talkin' Loud, ter patrocinado o seu regresso do exílio em no final dos anos 90. Quanto a destaques, o disco tem 'Ordinary Joe' e a muito interpretada 'Lean On Me', uma balada algo melosa, mas que conta com um apurado trabalho vocal de Callier, apoiado pela voz soprano de Minnie Riperton. Em resumo, conhecer o trabalho de Callier não é perca de tempo, mas não lhe reservo o lugar na 1º liga da música soul, talvez na divisão de honra.



Também na divisão de honra, mas sem dúvidas mais próximo da subida de divisão está Bill Withers, que construiu a sua reputação à boleia da sua aproximação à pop branca. Mas enquanto Callier não era um groove-maker, Withers soube projectar a sua música, sendo responsável por algumas proezas que conseguiram, de forma incólume, a travessia entre os anos 70 e a actualidade. Dos seus trabalhos para a editora Sussex, merece destaque o 3º registo, Still Bill (1972). Aqui descobrimos a versão original de 'Take It All In And Check It All Out' (Joseph Malik fez uma óptima versão deste tema no seu 1º disco de 2002, Diverse) e aquele fantástico riff de guitarra extraído de 'Use Me', que Uschi Classen reproduziu em 'Wise Words' no seu disco de estréia de 2002, Soul Magic), para citar apenas os melhores exemplos. 'Lean On Me' volta a ser o nome de uma balada que iria ser muitas vezes reinterpretada (sem acrescentar nada ao original) e em 'Lonely Town, Lonely Street' Withers encontra mais um riff memorável. Motivos mais do que suficientes para considerar Withers como um compositor inspirado e merecedor de uma boa dúzia de audições.

À 3ª não foi de vez

De passagem por um hipermercado, verifico que existe uma secção com saldos de discos. Não resisto, apesar de saber antecipadamente que me vou arrepender de perder o meu tempo: porque nunca há nada que interesse, porque o que vale a pena eu já tenho e vai irritar-me encontrar por metade do preço e, acima de tudo, porque vou acabar por levar alguma coisa que não vale de facto a pena.

E assim foi: por 5€ trago o último CD do Maxwell, Now (2001). Tenho acompanhado o seu trabalho desde Urban Hang Suite (1996) por considerar que dentro da geração dos cantores apostados na revitalização da soul, Maxwell é o que tem melhor voz e um dos que apresenta os arranjos mais inovadores, em grande parte fruto da parceria com Stuart Matthewman (aka Cottonbelly), um dos responsáveis pela obra-prima de Sade (Diamond Life, de 1984). Já tinha escutado Now na altura em que saiu, mas pareceu-me demasiado polido e MTV-friendly. E não me enganei: o disco nada acrescenta, antes retira, aos anteriores. Os arranjos são muito mainstream, simples (mas infelizmente também simplistas), a edição da voz de Maxwell perde eficácia quando comparada com as conseguidas polifonias dos discos anteriores e a matéria-prima (canções) é bastante menos inspirada.



Ao 3º disco de originais, Maxwell tinha obrigação de fazer melhor. Se é verdade que nenhum dos anteriores era uma obra-prima no seu conjunto, pelo menos cada um deles continha uma peça clássica: o 1º tinha 'Till The Cops Come Knockin' e o 2º (Embrya, 1997) tinha várias, mas sobretudo 'Gravity: Pushing To Pull', momento único de inspiração absolutamente sobrenatural, pela orquestração e trabalho sobre a(s) voz(es) de Maxwell. Apesar das baixas expectativas, esperava mais um clássico de calibre semelhante (é certo que ainda assim vale a pena esperar pela última faixa 'Now/At The Party' para um competente groove, seguramente saído da guitarra de WahWah Watson). Darei o benefício da dúvida a Maxwell uma vez mais, mas só compreendo este passo em falso (que ainda por cima mantém a mesma equipa dos trabalhos anteriores) pelo bom desempenho nos tops (afinal também compreendo que os artistas têm de comer). Por enquanto, recomendo que se continue a ouvir os discos anteriores, mas particularmente Embrya, no qual Maxwell esteve muito próximo de assinar a obra-prima definitiva do apregoado nu-soul.

A pop em estado de graça

Volto a 2003, porque a colheita pop de 2004 ainda não provou ser tão vintage como a do ano passado. Há dias já tinha recuperado 2 Banks of 4, Deyampert e ainda há pouco falei nos 3GW, por isso agora é a vez dos Micatone e Is You Is, mais uma grande edição da melhor editora alemã, a Sonar Kollektiv.



A voz de Lisa Bassenge até pode fazer lembrar a de algumas divas do neo-soul ou neo-jazz, mas a música, essa, é sempre perfeita, desde o piscar de olhos à Blue Note (a memória de Wes Montegomery em 'Shake it Baby'), ao soul de Filadélfia (o arranjo de cordas de 'Plastic Bags & Magazines' parece subtraída à Salsoul Orchestra), aos primeiros tempos de Nicolette (as inflexões vocais de 'Got to Give it Up'), as lições do primeiro Portished e Cassandra Wilson em 'Quiet Boy', a estética da editora Paper (em 'Mon Couer'), a Jill Scott em 'To The Sound', a Erykah Badu de 'Sweey Child', o Suba de 'Tidy Girl', novamente Nicolette em 'I'm Leaving Anyway', o friendly house de Robert Owens em 'Sit Beside Me' e - eles próprios, sem recorrer a ninguém - em 'Another Road'.

Mas o que faz deste disco uma das pérolas de 2003 é sem dúvida o cuidado extremos nos arranjos, assente na omnipresença de um contrabaixo musculado e, acima de tudo, os lugar reservado ao silêncio, prova que os Micatone já dominam o tempo em música. É um disco que tem muito para oferecer após repetidas audições. Quando músicos dotados sabem retirar as melhores lições da escrita de música, fruto de 10 anos de dieta e disciplina da programação electónica, pequenos milagres como Is You Is acontecem.

Caribbean melting pot

Imaginem uma banda de 8 membros originária de diversos pontos das Caraíbas que juntava no mesmo som os elementos distintivos do soul/funk, jazz, rock e reggae. Tudo devidamente temperado com um extremo savoir-faire, assente em arranjos minimalistas. No início dos anos 70, vivia-se um singular período em que as barreiras musicais que separavam as linguagens soul/funk e o jazz foram definitivamente eliminadas. Algumas vezes do lado do soul (os War ou os Madrill), outras vezes pelos músicos oriundos do jazz (Roy Ayers, Eddie Harris e, os mais emblemáticos Miles Davis e Herbie Hancock). Mas os Cymande foram neste aspecto uma banda absolutamente singular, uma vez que conseguiram utilizar a palete musical de uma forma verdadeiramente inesperada. Diria que foram os primeiros a utilizar com máxima eficácia todos os idiomas sobre os quais assentava o groove: a liberdade rítmica do funk e do jazz, o sentido melódico do soul, a energia do rock e as cores alegres do reggae e da música africana e latina.

Como quase sempre acontece com os visionários, os Cymande foram praticamente ignorados, tendo cessado as hostilidades após 3 discos editados entre 72 e 74 na editora Janus. Ouvir estes 3 discos é perceber muito da história da música nestes últimos 30 anos. Lá encontramos as sementes do p-funk (George Clinton já estava no activo, mas ainda não tinha gravado as obras-primas), o pós-punk (Liquid Liquid ou ACR), o hip-hop (Grandmaster Flash), entre tantos outros movimentos. Todos os que se deliciam com aquele baixo musculado do Bill Laswell vão perceber que nos Cymande o instrumento já era soberano, ao ponto que quase sempre conduzir toda a acção. E, claro, vão descobrir onde as bandas cut & paste como os De La Soul foram subtraír alguns dos seus samples mais emblemáticos.

Obter a trilogia completa dos Cymande (Cymande - o melhor, Second Time Around e Promised Heights) não é assim tão difícil. Em 99 a Sequel fez-nos o favor de os reunir num CD duplo (ao qual ainda juntou 3 inéditos) que denominou The Message (o nome de uma das faixas do 1º disco, a única que muito vagamente povoou os tops na altura da sua edição).



É justo recordar aqui um disco bem mais recente (2003), o qual fez a assinalável proeza de seguir a metodologia melting pop dos Cymande e registar uma colecção de canções que (infelizmente) uma vez mais parece votada ao ostracismo das playlists (mesmo as mais esclarecidas). Curiosamente, os 3 Generations Walking (disco homónimo) têm também as suas raízes espalhadas pelas Caraíbas e América Latina (o núcleo duro é formado por dois produtores - Michael Kenneth Lopez (MKL) e Herman "Soy Sos" Pearl - um deles oriundo de Belize, contando com participações de cantores oriundos do Chile e do Haiti). Acima de tudo os, 3GW, tal como os Cymande, procuram o mesmo graal sagrado (o groove), recorrendo para tal ao contributo (físico e espiritual) de 3 gerações. A editora house Spritual Life de Joe Claussell teve o bom gosto de editar um dos discos mais importantes dos últimos anos. Para a posteridade ficam pelo menos 3 clássicos contemporâneos: a versão de 'Slavery Days' para o original de Burning Spear (um clássico ele próprio), 'Who Knows' (que baixo!) e 'To Live' (que percussão!).

domingo, agosto 08, 2004

O genérico da novela

Há surpresas incríveis... Já há algum tempo que tinha reparado que a novela da noite da SIC ("Celebridade") tinha uma escolha curiosa para genérico. Custava-me a crer que o instrumental em causa fosse recente; com efeito diria que seria uma faixa recuperada do final dos anos 70/início dos anos 80, na linha da orquestras da Salsoul, mas mais radio-friendly.

Na outra semana, estava a colocar em dia as audições de meia dúzia de discos que sazonalmente encomendo da Amazon. Começo por uma colectânea do Barry White e - para meu espanto - brota-me das Revolver o genérico da novela, as is! Porra, saio da sala em protestos para me livrar do pincel do costume e sai-me logo isto na rifa!... Para os ignorantes como eu: é o 'Lover's Theme' (1974) da Love Unlimited Orchestra, ensemble alter-ego criado pelo maestro White.

Barry White é uma figura curiosa. Julgo que antes da série Ally McBeal e aquela coreografia nonsense para o tema 'You're The First, The Last, My Everything', poder-se-ia dizer que era mais conhecido do que ouvido, apesar do sucesso massivo que teve nos idos 70. Há muito tempo que venho adiando a compra de um disco dele: tinha a convicção que alguns dos primeiros trabalhos valiam a pena, mas nunca consegui perceber muito bem por qual disco começar. E quando assim é tem de se cometer o pecado de ir pela colectânea. E também não posso dizer que me saí mal: All-Time Greatest Hits é uma colectânea de 94 (na colecção Funk Essentials da Polygram) que não comete o erro das compilações mais recentes, que abordam também os anos 80 e 90. Esta fica-se pelas versões edit dos singles do anos 70 e fica muito bem.



White podia não ter a sensibilidade genial de Marvin Gaye, mas abordava o tema do sexo com a mesma honestidade explícita. Fartas orquestrações, arranjos luxuosos e uma voz que em si não é 5-estrelas, mas que compensa na forma de cantar, fazem de White uma audição válida para todos os devotos do som de Filadélfia (Gamble & Huff à cabeça) e do espólio da editora Salsoul. Tirando 2 ou 3 faixas em lógica de piloto automático, o disco é uma boa banda sonora para as quentes noites de verão, recuperando o glamour que hoje faz falta na maior parte da produção actual. E "What Am I Gonna Do With You", desta vez a homenagem de White à sua Lady Music, é puro "soul de cetim".

sábado, agosto 07, 2004

A música brasileira (quando valia a pena)

Confesso que a música que vou comprando (compulsivamente) vai dependendo dos hypes: não daqueles que são lançados por tablóides ou opinion-makers, mas daqueles que eu próprio me imponho. Depois de 10 anos a consumir pop/rock, comecei a investigar outras músicas, mais ou menos por esta ordem: blues, world, jazz, africana, reggae, latina, hip-hop, soul e - desde há ~2 anos atrás - música brasileira (anos 50, 60 e 70 - a partir daqui não vale a pena).

Da música Brasileira, conhecia apenas aquela rama que se habituou a incluir Portugal no seu roteiro de frivolidade, esses Netinhos, Bandas Evas e demais lixo sonoro que existe em qualquer país. Devo ter começado algures por Caetano Veloso (os melhores, felizmente) e alguma coisa de Gilberto Gil, como qualquer curioso da onda tropicalista. Mas quando resolvi aprofundar o assunto da música Brasileira, tive a sorte de começar por uma coisa tão grande como Milagre dos Peixes do Milton Nascimento. Não me aconteceu no passado assim tantas vezes, mas quando ouvi este disco senti-me completamente atirado para o lado; na realidade nunca tinha ouvido nada parecido: Milagre é a experiência espiritual mais intensa que já ouvi até hoje. O ex-crooner parte da matriz da música africana, esquecendo por um disco a matriz de Lennon & McCarthy em versão MPB e erguendo uma missa letúrgica utilizando sons da natureza, grooves soturnos e onomatopeias como matéria-prima.




A partir deste momento iniciei um processo mais sistemático de investigação do interminável acervo que é a música brasileira até ao final dos anos 70. Apaixonei-me por outros do Milton, Tom Zé, Marcos Valle, Egberto Gismonti, Deodato, Hermeto Pascoal, Tânia Maria, Nana Vasconcelos até decidir pela pequena extravagância de comprar através de um site japonês um disco de um tal Taiguara, chamado Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara.

Claro que depois de colocar as mãos - e os ouvidos - numa coisa destas, fico a pensar: como é possível? Uma obra-prima destas deveria ser audição obrigatória em todos os conservatórios deste mundo! E afinal, Taiguara era de início um cantor romântico e o disco teve distribuição muito restrita e breve, devido à censura (paradoxalmente, a música Brasileira deve de facto muitas obras-primas à censura), e só em 2002 foi reeditado pelos incansáveis japoneses. Custou uma pequena fortuna (entre IVAs e despachos de alfândega), mas valeu a pena; é uma das pérolas da minha colecção.

Deixo ainda outras pistas: Caetano Veloso (Jóia e Muito), Deodato (The Bossa Nova Sessions Vol. 1, que junto dois discos de 64), Edu Lobo (Cantiga de Longe), Egberto Gismonti (Academia de Danças, que tem algumas do essencial Corações Futuristas), Gilberto Gil (Refazenda), Hermeto Pascoal (Slaves Mass), João Bosco (Caça À Raposo), João Donato (Quem É Quem), Marco Valle (compilação japonesa Café Après-Midi), Milton Nascimento (Milton Nascimento 69, Milton 70, Clube Da Esquina, Minas, Gerais, Maria Maria/O Último Trem), Nana Vasconcelos (Saudades), Tamba Trio (Tamba 74), Tania Maria (Olha Quem Chega), Tom Zé (Estudando O Samba), Wagner Tiso (Wagner Tiso 78) e os dois primeiros A Trip To Brazil, escolhidos pelo Arnaldo DeSouteiro).

Escrito ao som de Cantiga de Longe do Edu Lobo, disco de 1970, gravado nos EUA com Airto Moreira e Hermeto Pascoal. Podem encontrar aqui as versões definitivas dos instrumentais venerados 'Casa Forte' e 'Zanzibar' (sim, são originais de Edu Lobo!), bem como outras 9 pérolas, entre as quais 'Zum-Zum' e 'Marta e Romão'. Os arranjos, o piano e a flauta do génio de Hermeto fazem deste disco uma peça incontornável da MPB. A voz e o violão de Edu fazem - claro - o resto. A Universal Brasileira reeditou o disco no final do ano passado, como parte de um conjunto de reedições da editora Elenco de Aloysio de Oliveira. Comprei numa loja especializada em música brasileira, mas com um alguma sorte, conseguem na FNAC.


Os melhores dos últimos 40 anos

Acho que todos os melómanos gostam destas coisas das listas dos melhores discos. Em tempos tinha feito uma lista com os melhores discos dos últimos 25 anos, adoptando o método de indicar um para cada ano. Como estou em férias e o tempo vai sobrando, acabei por fazer a coisa recuperando quase 40 anos (1965-2003). Vou partilhar aqui, mas não se espantem se daqui a uns meses voltar a este assunto, com as devidas correcções.

1965: MARTHA REEVES & THE VANDELLAS, Dance Party
1966: JOHN COLTRANE, A Love Supreme
1967: BOB DYLAN, Highway 61 Revisited
1968: VAN MORRISON, Astral Weeks
1969: CAPTAIN BEEFHEART & THE MAGIC BAND, Trout Mask Replica
1970: EDU LOBO, Cantiga de Longe
1971: MARVIN GAYE, What’s Going On
1972: MILES DAVIS, On The Corner
1973: MILTON NASCIMENTO, Milagre dos Peixes
1974: KRAFTWERK, Autobahn
1975: PARLIAMENT, Mothership Connection
1976: TAIGUARA, Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara
1977: THE CONGOS, Heart Of The Congos
1978: WAGNER TISO, Wagner Tiso
1979: CHIC, Risqué
1980: YOUNG MARBLE GIANTS, Colossal Youth
1981: JOY DIVISION, Closer
1982: JOHN CALE, Music for a New Society
1983: TOM WAITS, Swordfishtrombones
1984: LLOYD COLE & THE COMMOTIONS, Rattlesnakes
1985: THE POGUES, Rum, Sodomy & The Lash
1986: PRINCE & THE REVOLUTION, Parade
1987: THE TRIFFIDS, Calenture
1988: AMERICAN MUSIC CLUB, California
1989: DE LA SOUL, Three Feet High and Rising
1990: BLAZE, 25 Years Later
1991: MASSIVE ATTACK, Blue Lines
1992: DISPOSABLE HEROES OF HIPHOPRISY, Hypocrisy Is The Greatest Luxury
1993: BJÖRK, Debut
1994: PORTISHED, Dummy
1995: ST GERMAIN, Boulevard: The Complete Series
1996: MOTORBASS, Pansoul
1997: SYLK 130 PRESENTS KING BRITT, When The Funk Hits The Fan
1998: SLY & ROBBIE, Drum & Bass Strip To The Bone By Howie B
1999: THE CINEMATIC ORCHESTRA, Motion
2000: CHARI CHARI, Spring To Summer
2001: GOTAN PROJECT, La Revancha Del Tango
2002: DZIHAN & KAMIEN, Gran Reserva
2003: TWO BANKS OF FOUR, Three Street Worlds

A última compra

Hoje comprei o CD do Amp Fiddler (Waltz Of A Ghetto Fly). Já o tinha ouvido há cerca de 1 mês; gostei, apesar de não me ter parecido muito arrojado. Contudo, como não chegaram os Rare Moods e Sonoluce e o Studio 1 Dub estava esgotado, lá foi desta que levei o mais novo neo-soul buddy.



O meu lema de compra é simples: mais do mesmo não vale a pena (há tanta coisa por aí a merecer audição numa quente tarde de sábado). Mas temo que é assim: uma boa voz, funk q.b., e aquele minimalismo soul directamente descendente da Erykah Badu (para não ir mais atrás, que o rapaz deve ser novo de mais para se inspirar na idade dos seus avós). Sim, na verdade ficou pelos pais: acho que acabo de ouvir o 'Ballad of Dorothy Parker' do Prince em 10 versões diferentes... E é claro que o melhor Prince vem de George Clinton, Bootsy Collins e Sly Stone, mas paro por aqui! Afinal o rapaz é competente, sem dúvida. Mas tomem nota: música soul á sério em 2004 é Carl Hancock Rux, com o excelente Apothecary Rx. O resto é passatempo.